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“Autofagia”
I
Eu sou a alma de um cachorro abandonado
Pelo meu dono, pela rua e a carrocinha;
E já não sei se há uma dor maior que a minha
Que justifique andar na vida a maus bocados.
Daí, eu vou, na condição do cão cansado,
Que tem azar inigualável e bem murrinha,
Chorar minha auto-piedade comezinha,
Sentindo pena de meus ares de entrevado.
Abandonado em meus latidos de lamúria,
Uivo pro luar, uivo pras almas e pras ruas,
Porque meu lar de mansidão é a penúria,
Dessa que cobre cães benzidos pelas chagas
E não há Lázaro que minhas costelas nuas,
Tenha bondade de curar-me dessas mágoas.
II
Porque até Lázaro recheado de suas dores,
Por esta vida foi mais forte – engano meu? –
Que eu, mirando a autofagia do meu Eu,
Na condição inadequada dos temores.
Porque ainda ando a chorar essa ausência
De mansidão, de amor e paz e de martírio –
Nada que um cão que nada solto pelo rio
Possa transpor de uma beira à paciência.
Ando a comer, numa tigela de vazios,
A esperança nutritiva desses ossos
E os bacilos mais infectos e sombrios;
Alimentado de tristeza; um vira-lata,
Que passa a custo estes dias tenebrosos,
Feito um animal expulso a tiro pela mata.
(Fredson N. Aguiar)
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