terça-feira, 4 de dezembro de 2007

"Velha Manjedoura" - Soneto Espírita

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"Velha Manjedoura"



À minha filha Emanuelle



Por não sentir a dor do parto na virilha,
Por não sentir a fome exausta pelo peito
É que um pai cogita à sombra esse preceito:
Todo Amor é muito pouco à sua filha.

É mais amar, que a própria mãe, o amor que brilha
E disputar por seus carinhos de confeito;
É ansiar saber suas dores, bem sem jeito,
Do que a vida lhe prepara como trilha.

Somente um pai, ante o infecundo de seu ventre,
Cultiva aos olhos todo zelo e todo apego
Por um bebê que ora crescido mais não adentre,

Por entre o braço protetor de seu sossego
Que, tanto um dia, embalou-a no alpendre,
E hoje é só uma manjedoura sem aconchego.



(Fredson N. Aguiar)

"Pajelança" - Soneto Daimista

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"Pajelança"



À meu amigo Jean e à Tupinambá



Dessas almas encarnadas que exorcizo
Com silêncios reclusivos do que sou,
Fica um traço descarnado de granizo
De um demônio congelado que restou.

E a tristeza que me invade na aldeia,
Enche o teto espectral da minha oca
Com antepassados escorados na candeia –
Almas piladas junto aos grãos de tapioca.

É quando a mata estrala a copa e as raízes,
Que um estrondo inominável na vereda,
Vai emurchecendo outros Seres infelizes.

E entorpecido pelo canto da floresta,
Cambaleando na hipnose da água azeda,
Transmigro a alma de xamã à tua festa.



(Fredson N. Aguiar)

"Autofagia (alguém me ouve?)"

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“Autofagia”



I


Eu sou a alma de um cachorro abandonado
Pelo meu dono, pela rua e a carrocinha;
E já não sei se há uma dor maior que a minha
Que justifique andar na vida a maus bocados.

Daí, eu vou, na condição do cão cansado,
Que tem azar inigualável e bem murrinha,
Chorar minha auto-piedade comezinha,
Sentindo pena de meus ares de entrevado.

Abandonado em meus latidos de lamúria,
Uivo pro luar, uivo pras almas e pras ruas,
Porque meu lar de mansidão é a penúria,

Dessa que cobre cães benzidos pelas chagas
E não há Lázaro que minhas costelas nuas,
Tenha bondade de curar-me dessas mágoas.



II


Porque até Lázaro recheado de suas dores,
Por esta vida foi mais forte – engano meu? –
Que eu, mirando a autofagia do meu Eu,
Na condição inadequada dos temores.

Porque ainda ando a chorar essa ausência
De mansidão, de amor e paz e de martírio –
Nada que um cão que nada solto pelo rio
Possa transpor de uma beira à paciência.

Ando a comer, numa tigela de vazios,
A esperança nutritiva desses ossos
E os bacilos mais infectos e sombrios;

Alimentado de tristeza; um vira-lata,
Que passa a custo estes dias tenebrosos,
Feito um animal expulso a tiro pela mata.



(Fredson N. Aguiar)